“Era Uma Vez…”|BATATA DOCE CONTA HISTÓRIAS COM SABOR.

Sem formalidades, o Restaurante Batata Doce, em Lisboa, conta uma história de amor em tempo de guerra colonial. A história de Isabel Manuel Jacinto, aka Isabel Batata Doce, a menina que foi encontrada pelas tropas portuguesas no mato, em plena Guerra de Libertação, e trazida para Portugal pelo Batalhão 525, constituído, essencialmente, por cidadãos do Minho, não é ficção. É uma história de amor recuperada e por ser tão arrebatadora levou-nos ao Restaurante “Batata Doce” da propriedade da Isabel, para conhecer e saborear estas “estórias”.

Efetivamente o Amor vence sempre e tem o dom de nos encaminhar, de nos levar pelos caminhos certos. Foi assim com Isabel e foi também assim com o Restaurante Batata Doce, um projeto consagrado e de sucesso na Rua João da Mata, 56ª, Lapa – Estrela, Lisboa. A “Batata Doce” levou para aquele espaço a “sua” gastronomia e uma pontinha da sua vida, remetendo-nos para o ano de 1965, zona de Catete, Angola.

A História de Vida…

Viajámos até Catete, vila berço de Isabel, ao ano de 1965, num dos dias em que um grupo de soldados portugueses patrulhava uma região de conflito, no período de confrontos entre as forças armadas portuguesas e os movimentos de libertação, onde os guerrilheiros atacavam em nome da libertação de Angola. António Araújo, alferes, viu uma mulher negra que carregava nas costas uma criança envolta em panos, segurando outra pela mão. Assim que a mulher angolana sentiu a presença dos soldados, desatou a correr para o mato com medo de ser atingida. Ao fugir os panos soltaram-se e a criança de dois anos que seguia nas costas caiu. A mulher continuou a fuga com a outra pela mão, deixando esta criança para trás. Deixá-la ali, naquele lugar, entregue à própria sorte, era inconcebível!

Os soldados acolheram-na, levaram-na para o quartel e trataram dela. Isabel Batata Doce (Batata Doce porque Isabel com 2 anos gostava muito de batata doce e, por isso, os soldados apelidaram-na, carinhosamente, de Batata Doce) tornara-se num olhar poético infantil e num brilho de humanidade, num tempo árduo, gerado pelo efeito da guerra. A digna atitude dos soldados portugueses mudara a vida desta criança.

A primeira referência feminina chegava-lhe pela mão de Visitação Teixeira de Carvalho, esposa de Marcelino Teixeira de Carvalho, oficial miliciano, acabada de chegar a Cadete, com a filha Luísa de 2 anos. Visitação vestiu Isabel com os vestidos da filha, contribuindo assim para um melhor bem-estar da criança que se encontrava envolta em panos.

Isabel, que continuava a gostar e a comer muita batata-doce, passava o dia a brincar com Luísa que se tornou a sua melhor amiga. Apesar desta forte ligação com a família Teixeira de Carvalho, à noite, a criança ficava entregue aos cuidados de Manuel Cândido Ferreira, na camarata onde dormia com os restantes militares. Os sentimentos de afetividade pela Isabel foram crescendo e para Manuel Cândido, Isabel era a filha que não tinha. No meio dos conflitos, a vida criou “relações de dependência” e afetividade: havia uma criança para cuidar.

E, aqueles militares, souberem adotar e acarinhar aquela petiza, frágil, desprotegida e inocente, na altura com os seus tenros dois anos de idade.

Uns meses depois, em março do mesmo ano, capturaram José Jacinto Diogo e levaram-no para o quartel. Dava jeito ter um suposto informante, que traduzisse em quimbundo as ordens do comando, para os movimentos de libertação terem conhecimento. José Jacinto ao ver a menina Isabel, disse que era sua sobrinha. No início, duvidaram das palavras do suposto tio, todavia, como os pais de Isabel não apareciam porque estavam nas matas, resolveram ir até Luanda, a casa da eventual avó, que acabou por confirmar a filiação. A partir desse momento Isabel Batata Doce passou a ter uma verdadeira identidade, “Isabel Manuel Jacinto”.

Em junho, chegou a Catete, Margarida Junqueira, mulher do comandante Manuel Junqueira. Isabel começou a passar os dias com Margarida e cedo se afeiçoou a Isabel.

Terminada a sua comissão, em agosto de 1965, o comandante e a mulher perguntaram a José Jacinto se podiam levar a pequena Isabel para Portugal e cuidarem dela.

Com uma infância ameaçada pela guerra, os pais no mato junto dos movimentos de libertação, o tio de Isabel acreditava que a sobrinha teria um futuro melhor sob os cuidados da família Junqueira do que se continuasse a viver numa terra em conflitos. Estava-se, numa altura em que fervia o horror de uma guerra iníqua para ambos os povos, penso eu!

Manuel Cândido Ferreira, afeiçoado à criança, queria igualmente levar a petiza para Portugal e cuidar dela. A guerra a revelar o bom caracter do militar! Todavia, Manuel Ferreira, não quis sobrepor-se ao tenente coronel Junqueira. Era preciso respeitar as hierarquias. Uma grandeza que sublinha a sua passagem por África: afetividade, honra e respeito!

A afetividade de Margarida Junqueira por Isabel abriu caminho e, formou uma nova família com a inclusão de Isabel Batata Doce no seu seio familiar. Trouxeram-na para Portugal, onde cresceu sob o olhar do regime, o apoio dos militares, o carinho, o conforto e a educação que a família Junqueira proporcionava. Porém, o antigo regime aproveitou-se da situação e tomara para si os louros de generosidade dos soldados, para propagandear a sua própria bondade por África. 

Às voltas com essa situação, Manuel Cândido Ferreira irritou-se ao verificar que a criança estava a ser usada para mostrar uma suposta bondade dos portugueses para com os africanos.

E assim a infância de Isabel decorria entre as notícias dos jornais, que o coronel pouco ligava, e a vida no seio da família Junqueira: com os irmãos de coração, Gonçalo e Margarida, e os pais adotivos.

Dos 5 aos 12 anos, estudou no Colégio interno do Alvor, em Paiões, Sintra. Só ia a casa aos fins-de-semana e, durante as férias, visitava os Teixeira de Carvalho, a sua amiga de sempre, Luísa. Estudou, também, no colégio Filhas de Maria Imaculada, no Bairro S. Miguel.

A mãe adotiva, Margarida Junqueira, faleceu em 1977, tinha Isabel 14 anos. Apesar de viverem em harmonia e de se sentir uma “Junqueira”, com a morte de Margarida, Isabel decidiu dar outro rumo à sua vida.

Começou por arranjar trabalho no Porto, na mesma irmandade de freiras onde tinha estudado. Posteriormente, foi viver para Lisboa, onde contou com o apoio do capitão Altinino Gonçalves, que a acolheu em sua casa e lhe conseguiu um emprego na Portugal Telecom.

Dividir uma casa com uma amiga, cuidar de crianças e idosos e fazer comida para fora, que os restaurantes compravam, fazem parte da sua história. Aos 26 anos, trabalhava, durante o dia, num pronto-a-comer, em Santos, à noite, numa hamburgueria, no Rossio, que acumulava com os salgadinhos que fazia para restaurantes. Foi nesta altura que conheceu João Castanheira, seu marido e pai dos seus dois filhos: Joana e Francisco. Profissionalmente, durante um tempo, concessionaram alguns bares em teatros, na grande Lisboa, e o passo seguinte foi abrir um restaurante. Assim aconteceu o Batata-Doce, pensado para criar laços cá & lá. Que desde então se tornou no projeto de vida de Isabel e João.

Já com a vida estabilizada, era chegada a altura de remexer um pouco com o passado e encontrar a família biológica, a peça do puzzle que faltava para preencher a sua história de vida.

Isabel pesquisou a sua origem biológica, retomou contactos e começou a procurar a melhor forma de conseguir informações.

Decorria o ano de 2015, cinquenta anos depois de ter sido carinhosamente cuidada pelos soldados portugueses em Catete. Isabel dirigiu-se ao arquivo do Diário de Notícias para procurar um jornal antigo. No acervo do jornal, os arquivistas acabaram por encontrar o jornal que exibia a fotografia de uma criança de uns 3 anos, rodeada de militares e religiosos, com este título: “Promessa cumprida: os soldados encontraram a pretinha no mato e batizaram-na no Santuário do Sameiro.”

Paralelamente, o marido de uma sobrinha, Roberto Paulo, de férias em Lisboa, entrou em contacto com Isabel, através do Facebook. Localizou primeiro o restaurante Batata Doce e daí foi um passo para chegar à tia!

Em África, a família nunca a deixou de procurar, durante cinco décadas… até a encontrar.

Com a ajuda da Notícias Magazine e com o apoio da Angonabeiro e da Taag, proporcionou-se o reencontro de Isabel com a família biológica.

A separar estas histórias está meio século, agora juntas sem cerimónia. É o final feliz de uma daquelas histórias que dava um excelente filme.

O Projeto de Vida…

Restaurante Batata-Doce

Recorrendo não só às suas raízes africanas, mas também às vivências em Portugal, Isabel e João abriram o Restaurante Batata Doce, um negócio de família que não tem chefes famosos, menus de degustação caros, garrafeira de vinhos premium, nem a pretensão de ser mais do que é: um lugar de partilha de histórias, de palavras e de sorrisos verdadeiros, onde é servida comida saborosa, deliciosa, mesmo!

É uma casa de “sentadas”, de reunião, que representa as origens do casal e as vivências de Isabel. No exterior, um banco corrido de madeira para quem aguarda por mesa ou quem quer fumar um cigarro; no interior, a sala de refeições com uma decoração despretensiosa, algumas peças simples, descomplicadas e espontâneas, assim como o casal.

O restaurante promove um ambiente puro, acolhedor e familiar. É pequeno e simplista, e a comida fala por si, entre pratos portugueses mais conhecidos do receituário nacional, como Pataniscas com Arroz de Tomate Malandrinho com Coentros, Arroz de Pato, Arroz de Cabidela, ou os de raízes africanas. Moqueca de Camarão, Calulu e Moamba de Galinha são três das estrelas angolanas deste cantinho, servidos de forma simples.

O toque caseiro reflete-se ainda nas sobremesas, todas feitas pela Isabel. Nada vem de fora: o Crumble de Maçã com Gelado ou o popular “Bolo de Chocolate” são recomendados.

Ao comando da cozinha, Isabel apresenta pratos e pratinhos deliciosos para saborear num ambiente descontraído e hospitaleiro. Para ir picando tem sempre à mão pastéis e rissóis, que pode saborear sem formalidades no restaurante ou em casa, seja para festas, encontros ou para uma refeição rápida. O Batata-Doce também dispõe de serviço de take away.

Claro que provámos tudo. Comecemos pela “Moqueca de Camarão” que chegou à mesa. Maravilhoso este prato angolano, em quimbundo (língua angolana) “Mu´keka”. Tanto a palavra “Mu´keka” como o seu delicioso sabor são herança dos escravos levados pelos portugueses de Angola para o Brasil.

A Moqueca incorpora o óleo de palma (extraído do dendém), ingrediente que confere ao prato uma cor aliciante, o leite de coco, que lhe atribui um aroma penetrante, o sabor dos pimentos, coentros e camarão, uma mescla de ingredientes surpreendente, e, claro, a mão de uma Afro-Portuguesa, num prato condimentado, aromático, forte, quente e muito apetitoso.

Depois, todos à mesa para devorarmos os pitéus de Isabel, pratos cheios de sabor e recordações.

A tudo isto somamos a simpatia de quem nos recebe: João, atencioso, educado, sem conversas despropositadas e constantemente preocupado com a satisfação do cliente. As conversas e os sabores das iguarias… o peculiar sabor de bem-estar, apetece-nos mesmo prolongar a refeição para lá do habitual. O bem-estar existe: sussurrei estas palavras!

A história de Isabel foi contada numa reportagem assinada pelo jornalista Ricardo J. Rodrigues. “Um Milagre na Guerra – ou As Muitas Vidas de Isabel Batata Doce”, publicada, em novembro de 2015, na Noticia Magazine, valeu ao jornalista o Prémio Gazeta de Imprensa.

Para mais informações: Batata Doce.

Morada: Rua São João da Mata, 56A, Lapa-Estrela, Lisboa.

Horário de Funcionamento: de segunda a sábado, das 12:30h às 02:00h

Dia de Encerramento: Domingos

Crédito fotográfico: Miguel Silva

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